A milícia que você conhece morreu

A recente invasão de milicianos no Hospital Municipal Pedro II revelou mais do que um episódio isolado de barbárie. Mostrou ao país o quanto as organizações criminosas evoluíram em sua capacidade de ocupar, intimidar e moldar territórios urbanos. Longe de ser uma exceção, o caso é um sintoma de um fenômeno mais amplo que exige atenção urgente: a transformação estrutural das milícias no Rio de Janeiro.

O tema das milícias já foi exaustivamente abordado sobre diferentes áreas de conhecimento. Diversos estudiosos se debruçaram nas origens dessas organizações criminosas e muitos outros discutiram seus impactos na política de segurança do estado. Além disso, do ponto de vista jornalístico, muitos profissionais foram corajosos e colocaram suas vidas em risco para dar luz a um assunto tão importante. No entanto, o debate público congelou em uma narrativa que não dá conta da sua complexidade atual. Pouco se discute o novo modelo de atuação das milícias e como ele afeta diretamente a política fluminense.

O primeiro ponto crucial para se compreender é: as maiores milícias do Rio de Janeiro passam, desde 2008, por um processo de “despolicialização”. Tanto a milícia de Rio das Pedras como a Liga da Justiça – as duas maiores organizações criminosas – passaram a ter civis como lideranças principais e aumentaram substancialmente o número de ex-traficantes “tradicionais” em suas estruturas. Essa mudança ocorre pois, após a CPI das milícias em 2008, muitas lideranças originárias dessas facções – que eram policiais – foram presas. Dessa maneira, abriu-se um vácuo de poder que, nos dois casos, foi preenchido por civis. Em Rio das Pedras, por exemplo, desde a morte de Nadinho – que já não era policial – a milícia teve 3 líderes civis. Na Liga da Justiça, a situação não é diferente. Desde a prisão de membros da família Guimarães, foram 4 lideranças civis – que entraram em uma disputa que gerou a fragmentação dessa organização criminosa. Essas mudanças, iniciadas pelos trabalhos da CPI das milícias em 2008, não foram triviais e estão diretamente ligadas à nova forma de atuação desses criminosos.

Desde a adoção de novas práticas criminosas – como o tráfico de drogas – até a entrada de ex-traficantes em suas fileiras de guerra, as milícias mudaram, sobretudo, a forma de se relacionar com a política do Rio de Janeiro. Se antes de 2008 havia uma intenção de que os próprios líderes milicianos tivessem espaços de poder nominais, depois da CPI isso se transformou. Nadinho e família Guimarães foram eleitos para mandatos eletivos na Câmara Municipal e na Assembleia Legislativa, participando ativamente das decisões políticas e da estrutura do poder estadual. Agora, com a nova configuração das milícias e a ascensão de civis a postos de comando, essas organizações têm menos incentivos para lançarem “candidatos próprios” e mais incentivos para atuarem como “agências reguladoras do voto” nesses territórios comandados por elas. Essa estratégia gera menos incerteza, menos exposição e preserva algum nível de proximidade com o poder público.

O episódio do Hospital Pedro II deveria mostrar que há uma agenda de pesquisa e de investigação sobre as milícias que a sociedade brasileira precisa se debruçar. Ignorar a profunda metamorfose desses grupos – de um poder armado local para uma sofisticada agência que regula mercados e, principalmente, votos – significa subestimar um grupo que coloca em risco a democracia e a soberania do território fluminense.

Gabriel Guimarães é Cientista Político (FGV/CPDOC), Mestre e Doutorando em Ciência Política pelo IESP-UERJ e pós-graduando em Marketing Político pela USP.