Isenção é bom e eu gosto

Tomar distância ajuda a enxergar o absurdo e o inusitado dos acontecimentos. Leio no jornal do dia que o governo federal está preocupado porque uma de suas principais bandeiras para as próximas eleições, a proposta de isenção do Imposto de Renda (IR) para aqueles que ganham menos de R$ 5,000 por mês, pode não ser compreendida pelo eleitor – que aparentemente não sabe o que significa “isenção”. O esforço do governo, segue a notícia, é traduzir ao povo com vídeos curtos de gatinhos que “isenção” significa que o pessoal vai pagar menos imposto.

A coisa toda poderia ter saído de um roteiro de comédia, pois o mesmo governo que está preocupado de que o povo não sabe o que significa “isenção”, governou 16 dos últimos 22 anos. Meus amigos de esquerda vão dizer “ah, mas houve o retrocesso do golpe contra a Dilma e o obscurantismo da extrema-direita”, ou “ah, não se revertem 500 anos de atraso em apenas 20 anos”. Que meus amigos me perdoem, mas haja complacência.

Em 2024, 29% dos brasileiros entre 15 e 64 anos são analfabetos funcionais, segundo dados da ong Ação Educativa. Já foi pior, no início do século, 39% dos adultos brasileiros eram analfabetos funcionais. É essa a grande conquista que o partido no poder federal tem a mostrar? No mesmo período inventou-se o smartphone, o carro elétrico e a inteligência artificial, e o Brasil não foi capaz de erradicar o analfabetismo funcional? Meus caros, se isso não é um sintoma de mediocridade e estagnação gritando em vossas caras, então eu creio que estou louco. 

É curioso notar que em nenhuma das seis eleições presidenciais entre 2002 e 2022, a educação foi tema relevante. No máximo, em 2018, a direita veio com aquela ideia de escola sem partido e militarização do ensino. Essas ideias não saíram da cabeça de um analfabeto funcional, mas sim de discípulos de Olavo de Carvalho, que o seguiam como se o mesmo fosse um guru que lhes revelara a verdade, e militares de pijama ressentidos com a perda de status social do militarismo. O X da questão é que esses grupos nunca fizeram da melhora dos índices educacionais a bandeira deles. O importante era combater a tal da “doutrinação marxista”.  

Entre a complacência da esquerda com todos os pecados, corrupções e ineficiências do seu bando e a resposta raivosa e anti-intelectual da direita, fica o Brasil, com economia estagnada, perdendo o bonde da história, com um mar de analfabetos funcionais entregando comida via apps, sem pensar no amanhã. “Dane-se a aposentadoria, eu sou livre e não tenho chefe.” Já ouvi variações dessa frase algumas vezes, de trabalhadores de aplicativos. Estão presos em um eterno presente porque, no fundo, qual futuro o Brasil lhes oferece? 

Os sintomas da desilusão nacional incluem a mania das bets. Meu barbeiro perdeu todas as poupanças e o veículo da família, uma moto, pois “investiu errado” em apostas online. Se a percepção é a de que o país não premia o trabalho duro e honesto, por que não tentar enriquecer rápido?

A elite econômica e intelectual brasileira nunca se preocupou, a sério, com educação. Analfabetismo, ao contrário de covid, não se pega no ar e quanto maior for o número de sem-educação, mais os privilégios dessas elites vão se perpetuando. Se você for um medíocre bem-nascido, provavelmente terá poupanças familiares ou rede de contatos (o networking) para lhe socorrer. Se você nasceu no bairro errado e com a cor de pele errada, vai ter que suar muito e oxalá a polícia não confunda seu guarda-chuva com uma metralhadora. Se você for muito sortudo e for cria de coronel, seu primo deputado vai descolar umas isenções de tributo federal para você num jabuti em um projeto de lei. Os donos do poder sabem bem o que significa “isenção”.

No Brasil, a bet mais importante é a loteria do útero.

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Dicas de leitura:

Laurentino Gomes dá uma boa medida da nula importância que a elite brasileira dá à educação desde o nascimento do país. Em seu 1822 ele cita o baixo número de escolas nas províncias. 

Antônio Gois em A Que Ponto Chegamos entrega dados de como sucessivos governos investiram pouco em educação, ainda que a trajetória tenha melhorado a partir da Constituição de 1988. 

Michael França tem o livro A Loteria do Nascimento e suas colunas na Folha, onde se debruça sobre temas de desigualdade de renda e educação. 

A coluna de Andrea Jubé no Valor de 26 de setembro de 2025 traz a notícia sobre isençao de IR.

Marco Bastos é ex-analista político